Os gestores que entendem as flexibilizações proporcionadas pelo estado de calamidade pública como sendo válidos e aplicáveis para qualquer situação durante o período do decreto podem ser surpreendidos na hora da prestação de contas aos órgãos de controle e à sociedade.

O estado de calamidade pública ou de emergência decretado nos municípios e estados, em decorrência da Covid-19, não pode servir de álibi para descumprimento de lei ou para flexibilização demasiada de procedimentos e de atendimento de normas de direito administrativo e de direito financeiro.

É certo que a própria Lei da Covid-19 (Lei Federal nº 13.979, de 2020), em seus dispositivos, prevê a dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus. Mas, e isso é importante frisar, essa dispensa é para compras e contratações relacionadas ao enfrentamento da pandemia, não para qualquer compra ou para qualquer serviço.

Essa relação de causa/efeito precisa ser publicamente demonstrada, com divulgação transparente de resultados gerados, até mesmo no que se relaciona aos preços contratualizados.

A Lei Geral de Licitações também admite a dispensa de licitação para formalização de contratos, no caso de calamidade pública e de emergência, quando esses estados de exceção estão oficialmente decretados, mas impõe que haja ampla e detalhada justificativa para a adoção não só da medida, mas da proporção da medida, em conexão com a causa que desencadeou o contexto calamitoso ou emergencial.

A Lei Eleitoral não é diferente… Em um de seus dispositivos, por exemplo, consta, como conduta proibida ao gestor público, “no ano em que se realizar eleição”, autorizar a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública.

Há, contudo, ressalvas: os casos de calamidade pública ou de emergência. Todavia, essas ressalvas não implicam em liberação total da proibição.

Portanto, se for necessário, como está sendo, de fato, em inúmeros municípios, que o governo local distribua gratuitamente gêneros alimentícios e outros bens assistenciais para famílias em situação de vulnerabilidade, essa concessão, admitida, em caráter excepcional, pela Lei, deve se manter na ressalva tolerada, sem excessos que extrapolem a cadência da exceção.

A Covid-19 e a calamidade pública que ela está causando não pode servir de álibi para promoção de futuros candidatos ao próximo pleito eleitoral, seja no Executivo ou no Legislativo.

O cuidado com a exceção e a atenção à motivação de decisões, de atos e de ações governamentais são essenciais para legitimar o resultado do que a administração pública realiza, pois, mesmo em calamidade pública e em estado de emergência, o gestor público não fica imune à apuração de responsabilidade pelo cargo que exerce.

O Tribunal de Contas da União tem um plano de acompanhamento de ações governamentais de combate à pandemia da Convid-19; o mesmo ocorre com tribunais de contas estaduais.

O Ministério Público, em todos os níveis e áreas de atuação, tem solicitado informações e editado recomendação a gestores públicos. E não somente os órgãos de controle, mas a própria sociedade, por meio de organização não governamentais, também está atenta.

Então, cuidado: o estado de calamidade causado pela pandemia da Covid-19 permite, pelo caos que ela desencadeia, situações de menor rigor no atendimento de normas de direito administrativo e de direito financeiro, mas não é (e não pode ser) abrigo para ilegalidades, excessos, abusos e especialmente prevalecimento eleitoral.